quinta-feira, 25 de março de 2010

Entre calos, espinhos e sonhos



Era uma vez um andarilho. Suas primeiras lembranças eram os seus primeiros passos. Ele já deixou para trás passos de formiga e passos de gigante. Já quis construir telhados verdes, construir máquinas de trovão, salvar os animais, mudar o mundo, ser um inventor, um doutor. Sonhava alto. E muitas vezes ele pagou caro por isso. Mas nunca deixou de caminhar.

Quando era jovem teve que deixar sua cidade natal. Ele não sabia bem por quê. Ainda era muito jovem para compreender certas coisas. Somente caminhou. Seu destino era um belo vilarejo, com muito verde e vida. Por ali ele encontrou outros como ele. Sentia-se em casa, em família. Caminhando, ele cresceu. E foi caminhando que conheceu uma linda rosa. Ficou completamente hipnotizado. Naquele instante aprendeu o verdadeiro significado da palavra “amor”. Entregou-se, de corpo e alma. De que adianta amar se não for por inteiro? Amor não se poupa, não se pede. Simplesmente floresce, encanta e conquista, como um belo jardim na primavera.

Com o passar do tempo aquele belo vilarejo foi ficando pequeno para o andarilho. Sentia que era hora de partir. Ele sabia exatamente pra onde ir, apesar de não saber o que iria encontrar por lá. Antes de partir, despediu-se do invejável jardim que havia cultivado ao longo dos anos ali no vilarejo. Havia flores do campo, lírios, e, claro, sua amada rosa. Aquele jardim lhe preenchia a alma. Assim, inundado entre dúvidas e certezas, se foi. O caminho era longo, árduo. Os calos iam aparecendo com a naturalidade de cada passo. A dor se fazia presente. Olhava para trás e via no horizonte tudo o que estava deixando para trás. Sempre se perguntava se aquele era o caminho certo. Teria sido muito mais fácil para ele ter ficado. Então por que partiu? Não tinha maturidade para responder a todas as dúvidas que o afligiam. Muitas vezes pensou em desistir e voltar. Mas algo lhe dizia para seguir em frente. Era mais forte que suas vontades, que seus mimos.

O andarilho, agora já não tão jovem, chegou a uma bela praia. Não conhecia ninguém ali, mas sabia que ali era seu lugar. Sentiu-se um peixe fora d’água. Arrumou um trabalho. E com ele se distraía. O trabalho era duro e nem sempre prazeroso. Os calos passaram dos pés para as mãos. Estava ali somente de corpo. A alma e coração havia deixado lá no belo vilarejo. A nostalgia tomava conta dos seus pensamentos. Mas o inverno aproximava-se, rigoroso, como há tempo não se via. Sentiu medo. Temia pelo jardim que deixara no vilarejo. A distância, implacável, se fazia presente. Um jardim não sobrevive sem alguém que o regue, que arranque as pragas, que lhe de atenção. Pequenos detalhes fazem toda a diferença. Nesse caso, a intenção não é o que vale. Quando soube que sua mais bela rosa havia morrido perdeu a fé. Sentia os espinhos da rosa entranharem na sua pele. Não havia nunca sentido dor maior. Jurou nunca mais cultivar rosas. Queria voltar para casa. Queria colo de mãe, tapinha no ombro do pai. Mas estava tudo tão longe. Estava tão sozinho. Só o tempo seria capaz de transformar aquelas feridas abertas em cicatrizes.

Mudaram as estações. O sol, tímido, nasceu novamente. Era primavera. Como fazia todos os dias, o andarilho caminhava. Cego a toda vida que o cercava, tropeçou. Quando olhou para baixou viu os cadarços desamarrados. Agachou-se para amarrá-los. Foi quando, então, viu uma bela rosa, ali, ao alcance das suas mãos. Ela quebrava a monotonia do verde na paisagem. Sensações misturaram-se. Estava confuso. Rosas são belas, mas machucam. Lembrando-se da promessa que havia feito, amarrou os cadarços e seguiu em frente. Porém, desse dia em diante, sempre que passava por ali reparava naquela rosa. E dia após dia, a rosa o cativava mais, e mais. Ele se deu conta que havia jurado algo que não poderia cumprir. Inútil resistir ao que vem de dentro. Entregou-se ao amor, novamente. Em pouco tempo havia de novo um belo jardim. Era feliz. Fazia novamente planos e sonhava. Sentia-se vivo.

Mas a sina daquele homem era clara. Ele era um andarilho. Seu trabalho tinha chegado ao fim por ali. A estrada era de novo seu destino. Aos olhos do andarilho, o mundo era como um relógio. E ele, com seus passos, era quem dava corda ao relógio. Sabia que não podia parar de caminhar, ou melhor, de correr. Correr atrás dos seus sonhos. Era algo que vinha de dentro, sem muita explicação. Porém, mais uma vez teria que deixar para trás o que aprendeu a amar. As cicatrizes marcadas em sua pele não o deixavam esquecer os riscos daquela sua decisão. Mas ele era convicto. E então, partiu.

Entretido com seus sonhos, o andarilho só se deu conta do quanto já havia caminhado quando seus calos voltaram a doer. Havia chegado a uma bela fazenda, no alto de uma montanha. A paisagem era diversa daquela com a qual estava acostumado. As árvores não tinham folhas. O chão estava coberto pela neve. Mas ele gostou. Era esperto e inteligente. Rapidamente se entrosou e se ocupou de diversas tarefas. Quando batia a saudade, ele fechava os olhos e conseguia ver seu colorido jardim na praia. Lembrava da rosa, do seu perfume e do quanto era sedosa. Isso lhe trazia conforto e tranqüilidade, lhe dava força pra seguir em frente.

O tempo, tirano, passava. E a distância, mais uma vez, passou a perna no andarilho. Havia recebido notícias da praia. As notícias não eram boas. Seu jardim não aguentou a fortes tempestades tropicais, as quais caíram como lágrimas, trazendo dor e destruição. Sua rosa era morta. Ele parecia não acreditar, ou melhor, queria não acreditar. Sentia novamente a dor dos espinhos perfurando sua pele. Desolado, chorou. Foi a única maneira que encontrou para extravasar sua dor e medo. Sentia-se novamente uma carcaça. Oca, frágil. Estava aprendendo ali que não existe jardim que suporte à distância, embora tivesse sempre acreditado no contrário. Aquilo o atingiu fundo. Quebrou algumas de suas convicções. Naquela noite ele não fez promessas impossíveis a si mesmo. Acreditava que Deus escreve certo por linhas tortas. Então, com serenidade, ele simplesmente continuou a fazer aquilo que sempre fez de melhor. Ele continuou a sonhar. Afinal, todos nós somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos.

sábado, 13 de março de 2010

As crônicas de um lar, doce lar

“Isso é uma bomba! Você tem que limpar bem esse filtro aqui, porque senão entope e explode. Ah sim, é perigoso. Tá bom? Bem, primeiro você coloca água até o nível dessa válvula de segurança. Depois coloca o filtro aqui, assim, e depois o café aqui dentro. Pode por bastante, porque senão fica sem graça. Água preta. Mas não o pressione senão a água não passa direito. Agora enrosca a parte de cima. Pronto! Pode por no fogo. Usa fogo alto no início, mas depois abaixa porque assim a água passa mais devagar pelo café e pega mais sabor.”. Essa foi a última lição do Sr. Giovanni: como usar uma cafeteira italiana e fazer um bom café. Mas bem, vamos começar a contar a estória lá do início.

Era início de fevereiro. Tinha acabado de voltar aqui pra Itália. Devia procurar casa para morar. E também um colega pra dividir um apartamento. Quando vim já sabia que não iria morar com o Michele, pessoa com quem dividi o apartamento ano passado. Ele tinha me avisado que queria morar sozinho. No início achei ruim, sabe como é, a gente se acomoda com as coisas. Mas algumas mudanças vêem para o bem. “Quem sabe não encontro uma pessoa bacana, inclusive que não saiba falar italiano e assim eu também pratique mais meu inglês?”. E foi assim que encontrei o Petar. Ele também estava procurando uma pessoa pra dividir um apartamento. Já é um pouco mais velho (29) e faz aniversário pertinho do meu, dia 16 de setembro. Iniciou o pós-doc lá no instituto em dezembro. É búlgaro, mas viveu os últimos 4 anos no Japão. Fez doutorado por lá. E acho que acabou pegando algumas coisas dos japoneses, como por exemplo: está sempre rindo, é cortês e abaixa um pouco o tronco quando te cumprimenta. Pareceu-me uma boa pessoa para dividir um apartamento. Ah, e não fala italiano além de “buongiorno”, “ciao” e “vorrei una lasagna”. Em contrapartida seu inglês é ótimo. E foi assim, com uma boa impressão, ao menos da minha parte, que selamos um acordo verbal e começamos a procurar apartamento.

Ao menos duas vezes por dia entrava nos sites imobiliários daqui de Gênova. Queria um apartamento mais perto do instituto, mas por via das dúvidas procurava em todos os bairros. Vai saber, né? As opções a um preço razoável eram poucas. Não se podia escolher tanto. Quando achava alguma coisa interessante, ligava. Ia lá ver o apartamento. E era sempre uma decepção. Ou o apartamento era velho, feio e escuro, ou custavam os olhos da cara, ou eram em lugares completamente fora de mão. Por duas semanas foi assim. Até que achei um que tinha um bom preço e, pelas fotos do site, parecia bom. Ah, e era perto do instituto. Daria até pra pegar a van pra ir e voltar pro trabalho quase em frente em casa. Liguei na imobiliária e marquei uma visita. Como esse era o mais interessante até o momento, fiz questão que o Petar me acompanhasse pra ver o que achava. Saímos do instituto às 17:30 e já estava começando a escurecer. Encontramos a moça da imobiliária e fomos ao apartamento que era ali perto. Quando chegamos ao apartamento, a primeira surpresa: os donos estavam lá. Uau, que consideração. Bacana. Um senhor mais velho, com cerca 70 ou 80 anos, com sua esposa e um rapaz mais jovem, provavelmente seu filho. Começaram a nos mostrar o apartamento. Dois quartos, um maior com cama de casal e outro menor com cama de solteiro; uma grande sala de TV; cozinha pequena mas conjugada com outra sala; dispensa; banheiro; hall de entrada; sacada. Ideal pra duas pessoas. Nem grande nem pequeno. Mas o conto de fadas termina por aqui. Os donos não estavam muito simpáticos, principalmente o velho. Parecia incomodado com alguma coisa. Pensei que fosse pelo fato de sermos estrangeiros ou por conversar com eles em italiano e depois traduzir, na medida do possível, em ingrêis pro Petar. Como no início, quando nos apresentamos e nos cumprimentamos, disseram que não falavam inglês, talvez pensassem que eu estava aproveitando o fato para difamar o apartamento, ou eles, sei lá. Velho tem cada besteira. De qualquer maneira, o apartamento era bom e as coisas bem conservadas. Muitas delas novas. Quando sentamos na sala para conversarmos sobre alguns detalhes veio a bomba: os donos moravam no apartamento de baixo. “Puts, que azar! Claro que o apartamento tinha que ter um defeito. Se eu arrotar na cozinha eles virão aqui reclamar. Imagina se fizermos alguma festa. Vou ter que comprar uma pantufa pra poder andar em casa”. Mas mesmo assim fomos embora com uma boa impressão do apê: era barato, grande e bonitinho. E a posição era ótima. Assim, mesmo sabendo que podíamos estar dando um tiro no pé tendo os donos tão perto, decidimos ficar com o apartamento.

Depois de longas duas semanas, com alguns percalços pelo caminho, conseguimos assinar o contrato. Nesse dia fiquei bem feliz. Não só por ter assinado o contrato e ter uma bela casa para morar, mas pelo velho dono, a partir de agora intitulado de Sr. Giovanni, ter sido bem mais simpático. Conversando com a moça da imobiliária descobri o motivo pelo qual o Sr. Giovanni estava de cara feia no dia que fomos ver o apartamento: tiveram que fazer um ‘gato’ para que tivesse luz na casa naquele dia, pegando-a lá do apartamento deles. Nosso apartamento não tinha luz nem gás. E como um bom idoso, é sistemático. Compreensível.

Com o contrato assinado pegamos as chaves e viemos, todos, ao apartamento. O Sr. Giovanni gostaria de nos mostrar “algumas” coisas. “Normal”, pensei. Como um bom idoso, ele também é metódico. Fazia questão de me ensinar tudo, como se fosse uma criança. Com paciência, ouvi tudo com bastante atenção, mesmo que por dentro estivesse pensando “qualé velhinho, sou um engenheiro, faço doutorado, não sou bobo”. As lições começaram no portão do prédio: “Essa aqui é a chave. Coloca devagar, sem forçar. Quando ela chegar até o fim.. ouviu o barulho? Aí sim você gira. Vai, tenta você agora.”. Parece brincadeira, mas não é. E assim as lições foram indo até entrar em casa, quando passamos então para nível intermediário. “Não deixem as persianas muito para cima porque senão quando chove suja as janelas”, “esse é registro geral do gás, vocês devem fechá-lo quando saírem de casa porque se vaza a casa explode”, “aqui você liga a bomba d’água. Não esqueçam de desligá-la porque senão a pressão nos tubos fica alta e se tem algum vazamento ela vai ficar funcionando e pode alagar a casa”, e assim foi para todos os registros e interruptores da casa. Desse jeito eu teria que acordar 10 minutos mais cedo pra dar tempo de desligar e fechar tudo antes de ir pro trabalho. Haja paciência. Mas por trás de toda aquela ladainha sentia que estava uma pessoa de um bom coração, preocupada com o seu imóvel (é a primeira vez que alugam o apartamento) e penso que também em nos ensinar algumas coisas, mesmo que óbvias. Suas intenções eram boas, como a de um avô sistemático e metódico que teima em achar que seus netos não cresceram.

Cerca de 5 dias depois instalaram a luz aqui no apartamento. Então já me mudei pra cá. Comecei a arrumar as coisas. No fim de semana comprei cabides e pude desfazer a mala. Que alívio. O problema é que ainda estávamos sem gás, e, consequentemente, sem água quente. Ou seja, sem banho. Eca, né? Que nada! Nesse frio aqui não se sua e o fedor vem com menos naturalidade. Uma semana sem tomar banho não seria um grande sacrifício. Queria estar na minha casa. E o tempo passou rápido. Hoje vieram instalar o gás. Já conhecendo o Sr. Giovanni, o avisei alguns dias antes que viriam hoje instalar o gás para que ele pudesse vir acompanhar tudo. Quando o rapaz do gás chegou, fui lá embaixo e chamei o Sr. Giovanni. Ele veio, olhou tudo atentamente, inclusive que a casa estava organizada. Ficou feliz. Depois que instalaram o gás, ele disse “Espera aí que vou ali embaixo pegar uma coisa e já volto”. Pensei que fosse um manual de como acender o forno ou abrir o registro do gás. Algo assim. Mas não. Voltou com dois sacos de café e sua mulher, a Sra. Amália, trazendo doces. Realmente me surpreenderam. Ensinou-me a usar a cafeteira, claro, e depois tomamos o café acompanhado de uma boa conversa e saboreando o doce, que parecia um pé-de-moleque coberto de chocolate. E quer saber? Aos poucos as dúvidas e receios de antes estão indo embora. E se do lado de baixo veem lições, do lado de dentro vem uma gostosa sensação de me sentir em casa.